(Para o Zé Skin)
Em 1989 um grupo de rapazes da província, sem dinheiro, demasiado jovens para terem formação académica, sem quaisquer estudos artísticos mas com livros lidos e imaginário Wasteland, Paraísos Artificiais e Contos de Maldoror talhado pelos videoclips e capas dos LP’s da Factory e de outras músicas industriais e electrónicas, tenta organizar uma exposição de arte em Ponte de Sor, apresentando obras da sua autoria. O grupo chamava-se NADA. Convidaram-me para participar e fazer parte do grupo, embora as minhas influências e comportamento fossem muito diferentes dos seus. Eu era um rapaz bem comportado, bom aluno, admirava através dos livros Picasso, Leonardo e Miguel-Ângelo, lia romances e poesia, tocava clarinete e saxofone, descobria o jazz, a música clássica e contemporânea e iniciava os meus estudos de arquitectura no Porto. Enquanto eu sonhava com os faunos dos quadros de Picasso bailando e tocando flauta sob a luz cintilante de paisagens mediterrânicas, eles veneravam a noite e uma certa ideia de degredo. Entregavam-se ao absurdo e à vida vivida e desperdiçada pela noite dentro, desabrochavam em criatividade; eu entregava-me intelectualmente à minha obsessão crescente pela arte e paralisava num oceano de referências. Parece uma visão preto no branco, redutora, mas era daquela forma que nos via então e vejo agora, à distância.
A estética deles era ingénua mas muito dura, seca, económica nos meios – as improvisações musicais de ressonâncias dos MUS : ~ , as recolhas e colagens de despojos da noite, as teatralidades do Visconde… e sobreviveram tão poucos registos de tanta criatividade! Eu, apesar de aparentar alguma segurança e maturidade, fazia somente as minhas primeiras pueris e tímidas tentativas artísticas. Embora na altura um certo snobismo me levasse a não lhes reconhecer então valor na proporção que reconheci depois, eles possuiam já um estilo vincadamente original, eram uma torrente de força, um grupo com uma atitude artisticamente válida.
Na transição para os anos noventa talvez nenhum de nós tivesse ainda presenciado uma exposição de arte ou, quando muito, tinha apenas estado perante telas representando paisagens alentejanas pitorescas toscamente pintadas. Mesmo sabendo pouco do que aquilo era, a nossa exposição fez-se com desenho, fotografia, pintura, joalharia, vídeo e estudos de arquitectura. Chamámos Neófitos à exposição e no ano seguinte fizémos uma segunda edição com novos neófitos, embora o grupo denotasse já algum desmembramento; aliás, em poucos anos, o NADA foi perdendo e ganhando entusiastas, mas efectivamente foi progressivamente tendo menos colaboradores até restar apenas eu. Directa ou indirectamente muitas pessoas participaram de alguma forma com a sua criatividade e todos foram o NADA: o Francisco, o Zé Skin, o Lex, o Vidrado, o Ruca, eu, o Júlio, o Jorge, o Visconde, o Jojó, o Quim, o Figueira, o Tó, o Paulo Rosa, ainda o João Pedro, a Iliana, o João Abel, o Carlos Marzia e outros, perdoem-me aqueles a quem eu esqueci de citar.
O NADA existiu vagamente no imaginário colectivo das pessoas; em Ponte de Sor falava-se dos “rapazes do NADA”, ou dos “NADAS”, porque as propostas do grupo eram consideradas estranhas e, talvez só por isso, fazia-se notar. O grupo não tinha condições para existir nem sobreviver – não gerava receitas, não tinha patrocínios regulares nem edifício-sede. Durante pouco tempo o Município de Ponte de Sor cedeu ao grupo uma cozinha, espaço exíguo de uma casa propriedade municipal, que serviu de depósito de materiais e de péssimo ateliê. Embora consciente de que não era levado muito a sério, o NADA propunha-se apresentar arte experimental na província. Quatro ou cinco exposições de artes plásticas montadas em salas de empréstimo, outros tantos concertos efectuados em cafés e salas de empréstimo e uma estranha publicação de nome Colédoco foi tudo quanto o NADA conseguiu organizar em cerca de seis anos de existência. O Colédoco foi lançado com honras de concerto jazz e com fundo de “vídeo-arte” em televisões dispostas no espaço de uma cafetaria; era uma folha solta, desdobrável, largada nos balcões dos cafés e de mão em mão – fracassou. Mais tarde publicaram-se nove números numa página de empréstimo do jornal da Paróquia de Ponte de Sor, o Ecos do Sor – também fracassou. Existiu ainda um décimo número do Colédoco, destinado ao Ecos do Sor, que nunca foi publicado. No meio dum jornal de província era esperado que uma página com um grafismo rudemente diverso do das páginas restantes, que propunha ora um humor ultra corrosivo, ora poemas herméticos ou, ainda, dissertações sobre arte e improvisação, sem condescendências à facilidade, fosse um “fracasso” e não conseguisse cativar o interesse da maioria dos leitores. O sentido do Colédoco era o de ser um canal estreito por onde passasse todo o género de coisas filiadas na arte e que nos pusesse a remoer as coisas do mundo.
O grupo NADA foi sucumbindo e desapareceu. Passaram entretanto dez anos desde o último evento que o grupo organizou, que foi uma exposição de pinturas minhas dos anos de 1994 e 1995. Coube-me a mim por um ponto final nas actividades do NADA. Coube-me também a decisão de, passados dez anos, fazer ressuscitar o Colédoco, agora em formato de blogue e, com ele, espero eu, o experimentalismo artístico, um pouco ingénuo mas autêntico, característico do NADA.
Nuno de Matos Duarte, Setembro/Outubro de 2005
(com agradecimentos muito especiais à Susana pela sobriedade na revisão do texto)
terça-feira, 4 de outubro de 2005
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